Relatório de Draghi sugere "mudança radical" na Europa

por Inês Moreira Santos - RTP
EPA

O relatório do ex-primeiro-ministro italiano sobre a competitividade da União Europeia face aos concorrentes China e Estados Unidos foi apresentado esta segunda-feira em Bruxelas, apelando a uma "mudança radical" por parte dos Estados-membros e das instituições. Segundo Mario Draghi, o bloco europeu devia garantir a sua preservação, estando a enfrentar um "declínio lento e agonizante". Nesse sentido, estimou em 800 mil milhões de euros as necessidades anuais de investimento adicional da UE, o equivalente a mais de quatro por cento do PIB comunitário, acima do Plano Marshall.

“A necessidade de crescimento da Europa está a aumentar”, é a ideia mais reforçada no aguardado relatório de Mario Draghi, que considera que se a UE não se conseguir tornar mais produtiva, eficiente e competitiva, “terá de escolher” de que ambições abdicar.

“É um desafio existencial”
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A única maneira de enfrentar esse desafio, segundo o ex-governante italiano, “é crescer e tornar-nos mais produtivos, preservando os nossos valores de equidade e inclusão social”.

“E a única maneira de nos tornarmos mais produtivos é a Europa mudar radicalmente”.

Investimento adicional
No aguardado relatório sobre a competitividade da UE, o antigo presidente do Banco Central Europeu (BCE) recorreu a estimativas da Comissão Europeia para destacar que é “necessário um investimento adicional anual mínimo de 750 a 800 mil milhões de euros”, o correspondente a um valor entre 4,4 e 4,7 por cento do Produto Interno bruto (PIB) comunitário em 2023.

“A título de comparação, o investimento no âmbito do Plano Marshall [plano de reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial] entre 1948-51 foi equivalente a 1-2 por cento do PIB da UE”,
observa o responsável.

Mario Draghi estima que, para alcançar tal meta, “seria necessário que a parte de investimento da UE aumentasse de cerca de 22 por cento do PIB atual para cerca de 27 por cento, invertendo um declínio de várias décadas na maioria das grandes economias da UE”.

“As necessidades de financiamento necessárias para que a UE cumpra os seus objetivos são enormes, mas o investimento produtivo é fraco, apesar da ampla poupança privada”, sublinha no documento.

Numa breve comparação entre a União Europeia e os Estados Unidos, Mario Draghi destaca que desde a anterior crise financeira, tem havido um “fosso considerável e persistente entre o investimento produtivo privado”, além de que “o défice de investimento privado nas duas economias não foi compensado por um maior investimento público, que também diminuiu após a crise financeira global e tem sido persistentemente mais baixo na UE do que nos Estados Unidos em percentagem do PIB”.

Dados também incluídos no relatório revelam que, em 2022, a poupança das famílias da UE foi de 1.390 mil milhões de euros, em comparação com 840 mil milhões de euros nos Estados Unidos.
Três áreas de ação
Entre centenas de propostas, o autor do relatório destaca “três grandes transformações” que a UE tem de enfrentar para se tornar mais competitiva, não só face aos Estados Unidos, como também relativamente à China.

“Este relatório apresenta três principais áreas de ação para promover o crescimento sustentável”, lê-se.

Em nenhuma das áreas o bloco europeu está “a começar do zero”, reconhece Draghi, destacando que a “UE ainda tem pontos fortes gerais – como sistemas de educação e saúde fortes e estados de bem-estar social robustos – e pontos fortes ainda em construção”. Contudo está “a falhar coletivamente em converter esses pontos fortes em indústrias produtivas e competitivas no cenário global”.

“Primeiro – e mais importante – a Europa deve reorientar profundamente os seus esforços coletivos para pôr termo à lacuna da inovação com os EUA e a China, especialmente em tecnologias avançadas”.

Esta primeira área de ação assenta na “necessidade de acelerar a inovação e encontrar novos motores de crescimento”, para colmatar o défice europeu na aposta tecnológica face a Washington e Pequim.

Já a segunda foca-se na redução dos “elevados preços da energia, [para a UE] continuar simultaneamente a descarbonizar-se e a passar para uma economia circular”, quando as empresas comunitárias pagam duas a três vezes mais de eletricidade e quatro a cinco vezes mais de gás do que as norte-americanas.

Mario Draghi elenca, em terceiro lugar, que “a Europa tem de reagir a um mundo de geopolítica menos estável, em que as dependências se estão a tornar vulnerabilidades e já não pode depender de outros para a sua segurança”. Por exemplo, no que toca à produção de ‘chips’, 90 por cento encontra-se na Ásia.

“Os países da UE já estão a responder a este novo ambiente com políticas mais assertivas, mas estão a fazê-lo de uma forma fragmentada que compromete a eficácia coletiva”, critica, propondo por isso “uma nova estratégia industrial para a Europa”.

Como soluções, aponta por exemplo uma emissão regular de dívida comum na UE, como aconteceu na covid-19, e um investimento maciço em defesa.

A UE deve avançar para a emissão regular de ativos seguros comuns para permitir projetos de investimento conjuntos entre os Estados-membros e ajudar a integrar os mercados de capitais", argumenta. 

"Se as condições políticas e institucionais estiverem reunidas, […] a UE deve continuar, com base no modelo do Plano de Recuperação da UE [adotado durante a covid-19], a emitir instrumentos de dívida comuns, que seriam utilizados para financiar projetos de investimento conjuntos que aumentarão a competitividade e a segurança da União”.

No entender de Mario Draghi, tal instrumento iria permitir “produzir um mercado mais profundo e mais líquido de obrigações da UE”.

Este relatório servirá para “reflexão sobre os desafios que a Europa enfrenta e sobre a forma como a UE, as suas instituições, os Estados-membros e as partes interessadas podem, em conjunto, ultrapassá-los para recuperar a vantagem competitiva da Europa”, nomeadamente face aos principais concorrentes, a China e os Estados Unidos, adiantaram as mesmas fontes.

Este relatório surge depois de um outro divulgado em abril passado pelo antigo primeiro-ministro italiano Enrico Letta, esse porém mais focado no mercado interno da UE, sendo que o de Mario Draghi se centra mais na cena internacional.
Von der Leyen pede “vontade política”
No dia em que o relatório de Mario Draghi foi apresentado, a presidente da Comissão Europeia apelou a “vontade política” na União Europeia para avançar com investimentos conjuntos para defesa, inovação e descarbonização, sugerindo mais contribuições nacionais ou novos recursos próprios.

“O que temos de fazer é analisar a vontade política de ter estes projetos europeus comuns e, depois, perceber se os vamos financiar com novas contribuições nacionais ou com novas fontes”, uma decisão que cabe aos países da UE, disse Ursula von der Leyen, falando em conferência de imprensa na sede do executivo comunitário, em Bruxelas.

Em declarações à imprensa junto ao antigo primeiro-ministro italiano, a líder da instituição argumentou que, “se as prioridades comuns forem definidas, […] têm de ser financiadas por verbas europeias”, em áreas como a defesa, inovação e descarbonização.

“E há duas formas de o fazer. A maior parte do orçamento é constituído por contribuições nacionais ou por novos recursos próprios e, portanto, ambas as formas são possíveis e os novos recursos próprios são um forte incentivo também para um financiamento europeu comum. Temos de olhar para ambos e, depois, tem de haver vontade política dos Estados-membros para avançar com os projetos europeus comuns”
, elencou.

Von der Leyen prometeu que “muita coisa [contida no relatório] estará refletida nas diretrizes políticas e nas cartas de missão” que guiarão os comissários europeus no segundo mandato à frente do executivo comunitário, nomeadamente no setor da Defesa.

“O facto de eu designar um comissário para a defesa é revelador, por exemplo, da importância do tema, mas é claro que muito mais comissários também estarão envolvidos para fazer avançar este tema”, comentou Ursula von der Leyen, numa alusão à composição da sua futura equipa, cuja proposta será divulgada esta quarta-feira.
Opiniões discordantes entre Estados-membros
Embora as fontes de financiamento nacionais ou da UE existentes cubram algumas das enormes somas de investimento necessárias, Draghi acredita que novas fontes de financiamento comum - as quais os países como a Alemanha se mostraram relutantes antes - podem ser necessárias.

Na opinião do ministro alemão das Finanças, Christian Lindner, os empréstimos conjuntos não resolvem os problemas da UE e a Alemanha - a maior economia do bloco - não concorda com a sugestão.

Já os Países Baixos admitem estar de acordo com algumas propostas para a União Europeia apresentadas pelo ex-chefe do BCE Mario Draghi, mas alertam que os investimentos públicos não devem ser vistos como um "fim em si mesmos".

De acordo com um comunicado do Ministério de Assuntos Económicos, o Governo holandês ainda está a analisar o novo relatório, embora concorde com a necessidade de uma política europeia mais integrada e menos "carga regulatória".
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